O FLERTE ENTRE A ASTRONOMIA E A FICÇÃO CIENTÍFICA
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O FLERTE ENTRE A ASTRONOMIA E A FICÇÃO CIENTÍFICA
A astronomia é uma das mais antigas entre as ciências naturais. Desde que os egípcios começaram a utilizar o movimento do Sol para contar o tempo – em 750 a.C. – até as últimas descobertas com os grandes telescópios, os humanos têm fascínio por essa ciência. Esse encanto vai além do que é concreto, visível e adentra no imaginário, isto é, na ficção. A ficção científica difere da fantasia, porque alguns de seus elementos imaginários se baseiam em postulados científicos fundamentados nas leis da natureza. Ao ser questionado sobre a relação entre ficção científica e astronomia, Andrew Fraknoi, chefe do Departamento de Astronomia da Faculdade Foothill, na Califórnia, e consultor educacional da Sociedade Astronômica do Pacífico diz: “A ficção científica amplia nosso pensamento, torna bem vindas novas percepções. A astronomia é a ciência mais aberta a tais ideias”.
E é também fonte para a criação. “A astronomia tem uma grande influência na ficção científica. Muitos dos autores da chamada ‘hard science fiction‘ – onde ‘hard‘ significa com forte embasamento científico – mantêm-se em contato com a astronomia e tentam retratar as novas ideias”, complementa Fraknoi. Entre os autores de ficção científica, aqueles que mais estão em contato com as grandes questões da astronomia atual, segundo Fraknoi, são Alastair Reynolds, Jack McDevitt e Geoffrey Landis.
Entusiasta da área, Andrew Fraknoi compilou uma lista de histórias curtas de ficção científica “hard” que abordam os principais temas da astronomia atual. Os tópicos variam desde arqueoastronomia (que estuda a astronomia de povos antigos), passando pela busca por inteligência extraterrestre (como o programa Search for Extraterrestrial Intelligence), até super novas e telescópios. A lista, em inglês, está disponível no site da Sociedade Astronômica do Pacífico.
Primeiras relações com a literatura
Os laços entre astronomia e ficção científica datam do século XVII. Em 1634, o filho de Johannes Kepler, Ludwig Kepler, após a morte do pai, publica o manuscrito Sonminum (Sonho), no qual um aluno do astrônomo Tycho Brahe é transportado para a Lua por forças ocultas. No manuscrito, Kepler apresenta uma descrição imaginativa detalhada de como a Terra pode parecer quando vista da Lua. Esse é considerado o primeiro tratado científico sério sobre astronomia lunar. Ainda nessa época, por volta de 1638, Francis Godwin escreveu o conto The man in the Moon (O homem na Lua). Nessa e em outras obras, Godwin se declara partidário do sistema cartesiano e adota os princípios da lei da gravitação, ao supor que a massa inercial decresce com a distância da Terra.
No mesmo século, usando os argumentos de Godwin, Cyrano de Bergerac escreveu sua obra L’autre monde (O outro mundo) que se dividia em duas partes: Histoire comique des états et empires de la Lune (História dos estados e impérios da Lua, 1657) e Histoire comique des états et empires du Soleil (História dos estados e impérios do Sol, 1662). Os contos, publicados por Henri Le Bret após a morte de Cyrano, relatam as aventuras de Dyrcona, que, na primeira parte, ao pousar na Lua, descobre que os habitantes de lá veem a Terra como uma lua sem vida. Na segunda parte, ao voltar da viagem à Lua, Dyrcona é acusado de bruxaria e preso, mas escapa e voa em direção ao Sol. Apesar de ter elementos fantasiosos, essa obra faz com que Cyrano de Bergerac seja considerado por Arthur C. Clarke, consagrado autor de ficção científica, como o primeiro a usar em suas obras foguetes para viagens espaciais.
A astronomia na ficção, em uma breve linha no tempo .
Astronomia na literatura de ficção nacional
Não é apenas a literatura estrangeira que tem laços com a astronomia. De acordo com Flavia Mara de Macedo, doutora em literatura comparada pela Universidade de Sorbonne, o brasileiro Monteiro Lobato também entrou nessa seara, sob influência de Júlio Verne. No livro Serões de Dona Benta, publicado em 1935, o personagem Pedrinho imagina uma viagem à Lua. Também no livro Viagem ao Céu, publicado três anos antes, Lobato narra flutuações na Via Láctea, encontro com marcianos e outras incursões na área da astronomia.
Aquelas obras do século XVII motivaram várias outras que reforçam as relações entre ficção científica e as grandes questões da astronomia. Entre elas, pode-se citar Micromégas, de Voltaire, publicado em 1752; Da Terra à Lua, de Júlio Verne, publicado em 1865; A guerra dos mundos (1898) e O primeiro homem na Lua (1901), de H. G. Wells, entre outros clássicos que permearam o século XX e motivaram muitos dos avanços científicos nessa época. Dos principais ficcionistas, nos últimos tempos, destacam-se Arthur Clarke – autor e um dos idealizadores dos satélites geoestacionários – e Carl Segan – astrônomo e autor do livro Contact (1985), em que relata a busca por inteligência extraterrestre através da inspeção de sinais de rádio, ao mesmo tempo em que discute a relação entre ciência e fé.
Segundo Roberto de Sousa Causo – escritor brasileiro de ficção científica e editor do livro Os melhores contos brasileiros de ficção científica –, outros autores também merecem destaque no cenário nacional. Entre eles, Causo indica Jorge Luiz Calife, um jornalista científico, considerado pai da ficção científica “hard” no Brasil e autor da trilogia Padrões de Contato, relançada neste ano em um único volume pela editora Devir. “Calife foi o sujeito que tirou Arthur C. Clarke da aposentadoria, resultando no romance 2010: uma odisséia no espaço II, uma continuação do clássico 2001: uma odisséia no espaço”, ressalta Causo.
Além de Jorge Luiz Calife, Causo cita o astrofísico Gerson Lodi-Ribeiro, o jornalista Clinton Davisson Fialho e o doutor em letras Nelson de Oliveira como escritores importantes na ficção científica brasileira contemporânea. Mas esses autores brasileiros não gozam do mesmo status que Segan e Clarke no meio acadêmico. “Como a ficção científica brasileira é um fenômeno intermitente dentro da literatura nacional, só agora ganhando algum impulso, eu imagino que os nossos astrônomos nem sabem que ela existe – com exceção talvez de Ronaldo de Freitas Mourão, que já resenhou o gênero para os jornais”, enfatiza.
Sétima e nona artes e a astronomia
Quem acompanha a indústria do entretenimento sabe que não é só na literatura que a astronomia e a ficção científica flertam. O cinema e as histórias em quadrinhos – nomeados, respectivamente, de sétima e nona artes, após o manifesto de Ricciotto Canudo, em 1923 – também são fontes de inspiração da astronomia através da ficção científica. Antes de 1995, viagens a planetas fora do sistema solar eram apenas frutos da imaginação retratados em filmes como a trilogia Guerra nas estrelas (George Lucas, 1977) ou Jornada nas estrelas (Robert Wise, 1979). Hoje, essas possibilidades são estudadas com muita seriedade por agências espaciais. Outros temas como viagens estrelares utilizando motores baseados na fusão nuclear também são temas abordados com frequência no cinema e que são pautas de pesquisas.
Nas histórias em quadrinhos, a obra pioneira foi As aventuras de Buck Rogers, publicada por Philip Francis Nolan em agosto de 1928. Pouco tempo depois, em janeiro de 1934, Alex Raymond publica Flash Gordon, onde as questões dos foguetes para viagens interplanetárias também são abordadas.
Primeiras revistas em quadrinhos que abordam a astronomia.
A ficção científica como estratégia para o ensino da astronomia
Além da inspiração mútua, a ficção científica também é útil no ensino da astronomia. “A ficção científica também ajuda na divulgação das descobertas e ideias da astronomia, de maneira que o público leigo pode apreciar”, sustenta Fraknoi. O professor da USP e um dos colaboradores do portal Aliens da Ciência (Arte e Literatura no Ensino da Ciência), Luis Paulo de Carvalho Piassi, corrobora as afirmações do professor Fraknoi. “A ficção científica pode desempenhar um papel no ensino de astronomia e há diversos exemplos desse uso. Particularmente, os materiais didáticos da nova proposta curricular do estado de São Paulo fazem uso da ficção para abordar conceitos astronômicos”, destaca Piassi. Como exemplo do ensino de astronomia através da ficção científica, Piassi descreve a utilização do romance Os náufragos de Selene, de Arthur Clarke, para explicar a força da gravidade. No romance, um grupo de turistas em viagem à Lua em um ônibus espacial sofre um naufrágio em um depósito de poeira lunar (cratera). Os problemas decorrentes da menor força da gravidade na Lua são os argumentos para a explicação desse fenômeno físico.
“O aspecto interessante é que a ficção permite voos pela imaginação que uma simples descrição não é capaz de proporcionar. Além disso, a ficção especula também sobre as questões sociais e políticas que podem advir do desenvolvimento do conhecimento científico, coisa que raramente outros materiais didáticos enfocam”, finaliza Piassi. Um bom modelo de reflexão sobre questões sociais e políticas feitas pela ficção são os debates que se apresentam no livro Contact, de Carl Segan. Nesse romance, as relações entre ciência e fé, o impacto da divulgação de informações científicas ao público leigo e as questões entre financiamento público e privado da ciência são trazidas à baila. Agora, a nós, resta uma pergunta: se muito do que a ficção científica imaginou no passado hoje é realidade, o que será que o futuro da astronomia nos reserva?
E é também fonte para a criação. “A astronomia tem uma grande influência na ficção científica. Muitos dos autores da chamada ‘hard science fiction‘ – onde ‘hard‘ significa com forte embasamento científico – mantêm-se em contato com a astronomia e tentam retratar as novas ideias”, complementa Fraknoi. Entre os autores de ficção científica, aqueles que mais estão em contato com as grandes questões da astronomia atual, segundo Fraknoi, são Alastair Reynolds, Jack McDevitt e Geoffrey Landis.
Entusiasta da área, Andrew Fraknoi compilou uma lista de histórias curtas de ficção científica “hard” que abordam os principais temas da astronomia atual. Os tópicos variam desde arqueoastronomia (que estuda a astronomia de povos antigos), passando pela busca por inteligência extraterrestre (como o programa Search for Extraterrestrial Intelligence), até super novas e telescópios. A lista, em inglês, está disponível no site da Sociedade Astronômica do Pacífico.
Primeiras relações com a literatura
Os laços entre astronomia e ficção científica datam do século XVII. Em 1634, o filho de Johannes Kepler, Ludwig Kepler, após a morte do pai, publica o manuscrito Sonminum (Sonho), no qual um aluno do astrônomo Tycho Brahe é transportado para a Lua por forças ocultas. No manuscrito, Kepler apresenta uma descrição imaginativa detalhada de como a Terra pode parecer quando vista da Lua. Esse é considerado o primeiro tratado científico sério sobre astronomia lunar. Ainda nessa época, por volta de 1638, Francis Godwin escreveu o conto The man in the Moon (O homem na Lua). Nessa e em outras obras, Godwin se declara partidário do sistema cartesiano e adota os princípios da lei da gravitação, ao supor que a massa inercial decresce com a distância da Terra.
No mesmo século, usando os argumentos de Godwin, Cyrano de Bergerac escreveu sua obra L’autre monde (O outro mundo) que se dividia em duas partes: Histoire comique des états et empires de la Lune (História dos estados e impérios da Lua, 1657) e Histoire comique des états et empires du Soleil (História dos estados e impérios do Sol, 1662). Os contos, publicados por Henri Le Bret após a morte de Cyrano, relatam as aventuras de Dyrcona, que, na primeira parte, ao pousar na Lua, descobre que os habitantes de lá veem a Terra como uma lua sem vida. Na segunda parte, ao voltar da viagem à Lua, Dyrcona é acusado de bruxaria e preso, mas escapa e voa em direção ao Sol. Apesar de ter elementos fantasiosos, essa obra faz com que Cyrano de Bergerac seja considerado por Arthur C. Clarke, consagrado autor de ficção científica, como o primeiro a usar em suas obras foguetes para viagens espaciais.
A astronomia na ficção, em uma breve linha no tempo .
Astronomia na literatura de ficção nacional
Não é apenas a literatura estrangeira que tem laços com a astronomia. De acordo com Flavia Mara de Macedo, doutora em literatura comparada pela Universidade de Sorbonne, o brasileiro Monteiro Lobato também entrou nessa seara, sob influência de Júlio Verne. No livro Serões de Dona Benta, publicado em 1935, o personagem Pedrinho imagina uma viagem à Lua. Também no livro Viagem ao Céu, publicado três anos antes, Lobato narra flutuações na Via Láctea, encontro com marcianos e outras incursões na área da astronomia.
Aquelas obras do século XVII motivaram várias outras que reforçam as relações entre ficção científica e as grandes questões da astronomia. Entre elas, pode-se citar Micromégas, de Voltaire, publicado em 1752; Da Terra à Lua, de Júlio Verne, publicado em 1865; A guerra dos mundos (1898) e O primeiro homem na Lua (1901), de H. G. Wells, entre outros clássicos que permearam o século XX e motivaram muitos dos avanços científicos nessa época. Dos principais ficcionistas, nos últimos tempos, destacam-se Arthur Clarke – autor e um dos idealizadores dos satélites geoestacionários – e Carl Segan – astrônomo e autor do livro Contact (1985), em que relata a busca por inteligência extraterrestre através da inspeção de sinais de rádio, ao mesmo tempo em que discute a relação entre ciência e fé.
Segundo Roberto de Sousa Causo – escritor brasileiro de ficção científica e editor do livro Os melhores contos brasileiros de ficção científica –, outros autores também merecem destaque no cenário nacional. Entre eles, Causo indica Jorge Luiz Calife, um jornalista científico, considerado pai da ficção científica “hard” no Brasil e autor da trilogia Padrões de Contato, relançada neste ano em um único volume pela editora Devir. “Calife foi o sujeito que tirou Arthur C. Clarke da aposentadoria, resultando no romance 2010: uma odisséia no espaço II, uma continuação do clássico 2001: uma odisséia no espaço”, ressalta Causo.
Além de Jorge Luiz Calife, Causo cita o astrofísico Gerson Lodi-Ribeiro, o jornalista Clinton Davisson Fialho e o doutor em letras Nelson de Oliveira como escritores importantes na ficção científica brasileira contemporânea. Mas esses autores brasileiros não gozam do mesmo status que Segan e Clarke no meio acadêmico. “Como a ficção científica brasileira é um fenômeno intermitente dentro da literatura nacional, só agora ganhando algum impulso, eu imagino que os nossos astrônomos nem sabem que ela existe – com exceção talvez de Ronaldo de Freitas Mourão, que já resenhou o gênero para os jornais”, enfatiza.
Sétima e nona artes e a astronomia
Quem acompanha a indústria do entretenimento sabe que não é só na literatura que a astronomia e a ficção científica flertam. O cinema e as histórias em quadrinhos – nomeados, respectivamente, de sétima e nona artes, após o manifesto de Ricciotto Canudo, em 1923 – também são fontes de inspiração da astronomia através da ficção científica. Antes de 1995, viagens a planetas fora do sistema solar eram apenas frutos da imaginação retratados em filmes como a trilogia Guerra nas estrelas (George Lucas, 1977) ou Jornada nas estrelas (Robert Wise, 1979). Hoje, essas possibilidades são estudadas com muita seriedade por agências espaciais. Outros temas como viagens estrelares utilizando motores baseados na fusão nuclear também são temas abordados com frequência no cinema e que são pautas de pesquisas.
Nas histórias em quadrinhos, a obra pioneira foi As aventuras de Buck Rogers, publicada por Philip Francis Nolan em agosto de 1928. Pouco tempo depois, em janeiro de 1934, Alex Raymond publica Flash Gordon, onde as questões dos foguetes para viagens interplanetárias também são abordadas.
Primeiras revistas em quadrinhos que abordam a astronomia.
A ficção científica como estratégia para o ensino da astronomia
Além da inspiração mútua, a ficção científica também é útil no ensino da astronomia. “A ficção científica também ajuda na divulgação das descobertas e ideias da astronomia, de maneira que o público leigo pode apreciar”, sustenta Fraknoi. O professor da USP e um dos colaboradores do portal Aliens da Ciência (Arte e Literatura no Ensino da Ciência), Luis Paulo de Carvalho Piassi, corrobora as afirmações do professor Fraknoi. “A ficção científica pode desempenhar um papel no ensino de astronomia e há diversos exemplos desse uso. Particularmente, os materiais didáticos da nova proposta curricular do estado de São Paulo fazem uso da ficção para abordar conceitos astronômicos”, destaca Piassi. Como exemplo do ensino de astronomia através da ficção científica, Piassi descreve a utilização do romance Os náufragos de Selene, de Arthur Clarke, para explicar a força da gravidade. No romance, um grupo de turistas em viagem à Lua em um ônibus espacial sofre um naufrágio em um depósito de poeira lunar (cratera). Os problemas decorrentes da menor força da gravidade na Lua são os argumentos para a explicação desse fenômeno físico.
“O aspecto interessante é que a ficção permite voos pela imaginação que uma simples descrição não é capaz de proporcionar. Além disso, a ficção especula também sobre as questões sociais e políticas que podem advir do desenvolvimento do conhecimento científico, coisa que raramente outros materiais didáticos enfocam”, finaliza Piassi. Um bom modelo de reflexão sobre questões sociais e políticas feitas pela ficção são os debates que se apresentam no livro Contact, de Carl Segan. Nesse romance, as relações entre ciência e fé, o impacto da divulgação de informações científicas ao público leigo e as questões entre financiamento público e privado da ciência são trazidas à baila. Agora, a nós, resta uma pergunta: se muito do que a ficção científica imaginou no passado hoje é realidade, o que será que o futuro da astronomia nos reserva?
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